4815162342 = 1984

Por Carlos Alexandre Monteiro*

(Antes de tudo, o aviso de sempre: o texto abaixo encontra-se cheio de spoilers pra quem não está em dia com a exibição da série na tevê americana. Caso você seja uma dessas pessoas, siga a leitura por sua conta e risco.)

Uma das inegáveis virtudes de Lost é a de fomentar o interesse de seu público por livros. Os criadores da série não só já puseram vários nas mãos de Sawyer como também rechearam a Estação Cisne com diversos exemplares. Na incansável busca por referências, muitos telespectadores não perdem a chance de fuçarem os títulos que já apareceram em episódios, como “O Terceiro Tira” (“The Third Policeman”), de Flann O’Brien. Recentemente até aconteceu o inverso: foi lançado nos Estados Unidos o livro “Bad Twin”, de autoria de um tal Gary Troup, escritor que estava no vôo 815 – uma bela jogada de marketing que certamente já faz vítimas e ainda fará outras tantas, inclusive este que vos escreve.

Se na coluna passada falei da importância de “Star Wars” na decadente trajetória moral de Michael Dawson, agora trato de livros e seu uso como fontes para a série. Na verdade, abordo um apenas, de vital importância para ela pelo que pudemos ver até agora: “1984”, de George Orwell. Obra que serviu de inspiração também para o “Big Brother”, “1984” exerce em Lost uma influência mais madura e instigante.

Resumidamente falando, “1984” conta a luta de um homem, Winston Smith, para tentar libertar-se do regime totalitário de um novo mundo em que os governantes regem a sociedade com rédeas curtíssimas. E como se dá esse controle ? Basicamente assim:

1º) Uma espécie de adestramento popular em que todos são ensinados desde cedo a respeitar, amar e não contrariar o “Grande Irmão”, um ser onipresente, onisciente e líder da Pista nº 1, o nome da Inglaterra neste novo mapeamento mundial;

2º) Monopólio da produção de bens culturais e materiais por parte do Estado;

3º) Vigilância constante de todos por câmeras e microfones instalados em cada residência do novo país.

Difícil ler os três procedimentos descritos acima e não lembrar da famigerada Iniciativa Dharma, né ? O último episódio, então, deixa ainda mais clara toda a presença da obra de Orwell em nossa querida série. As evidências são várias: a certeza de que há uma pesquisa envolvendo condicionamento psicológico na Estação Cisne, a adoração a Alvar Hanso por parte dos Outros…e nem os produtos Dharma que já conhecemos há um bom tempo escapam. Eles mais parecem “primos” dos ‘Vitória’ – esta, a marca única das comidas, bebidas, cigarros e demais bens de consumo em “1984”. Até a mensagem positiva incutida nos dois nomes parece ter fins iguais.

Mas são as atividades ocorridas na recém-descoberta Estação Pérola que merecem um parágrafo à parte nesse jogo de encontrar semelhanças entre Lost e “1984”. O trabalho de assistir aos comportamentos de pessoas sem que elas saibam e registrá-los em relatórios é também a atribuição de muitos dos responsáveis pela ordem e progresso do estado anti-utópico relatado no livro. E a comparação ainda se torna mais pertinente: na trama de Orwell o protagonista Winston é funcionário do chamado “Ministério da Verdade”, e seu trabalho consiste em alterar informações de publicações anteriores de forma conveniente à ação governamental. E sabe como ele faz isso ? Lê as notícias atuais, pesquisa as antigas, as altera e reenvia os novos escritos à um banco de dados através de…tubos pneumáticos!

Podemos também encontrar informações baseadas nos componentes de “1984” em detalhes menos importantes da série. Por exemplo, um trecho do livro que deve ter chamado a atenção de JJ Abrams e asseclas é o que trata do principal passatempo do povo oprimido e forçosamente alienado. E qual é ele ? Veja: “A Loteria, com seus enormes prêmios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal, se não o único, motivo de continuar a viver”. Quem sabe não saiu daí a idéia pra fazer de Hurley um milionário ?

Enfim, “1984” parece ser realmente uma chave pra descobrirmos a origem de muito o que vemos em Lost. Fica a dica: vale cair dentro da leitura do romance – e restam poucas dúvidas de que isso foi justamente o que Alvar Hanso, Gerald e Karen DeGroot andaram fazendo há um tempo atrás…

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Carlos Alexandre Monteiro é jornalista, vocalista e guitarrista da banda Netunos – http://www.netunos.com.br – e tem medo do totalitarismo, ainda que em ficção.

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6 COMENTÁRIOS

  1. Coluna perfeita! Parabéns Carlos!

    Tomara que todos aqui sigam seu conselho e arranjem o livro “1984” para ler. Se Lost levar as pessoas a ler mais, a série vai ter mais um motivo pra ser notável, embora “cheia de erros”, como disse nosso amigo RH alguns posts abaixo.

    Mãos à leitura!

  2. * oi carlos *
    * achei os paralelos que vc apontou de Lost com 1984 bacanas e interessantes * mas discordo da frase ´enfim, parece ser uma chave pra descobrirmos a origem de muito o que vemos em Lost´*
    * acho que nenhum livro vai explicar Lost * nem mesmo os que os autores dizem que serviram de inspiração (como o Lindelof falou de The Stand do Stephen King) * é que não acho que a trama de Lost seja inspirada diretamente em algum livro específico * autores carregam no inconsciente aquilo que já leram *
    e Lost é um caleidoscópio de toda a referência pop (livros, filmes, autores etc) assimilada por uma turma esperta e inteligente de bons roteiristas (javi, carlton cuse, lindelof, j.j.) *

  3. hehe, muito bom…
    concordo que a origem de várias coesas que vemos em Lost vem de livros, filmes e etc, não que isso vá explicar a série, mas há inspirações bem claras! =D
    pra quem já conhece fica divertido identificar alusões, referências, e quem não conhece tem portas para mundos fora de Lost abertas a cada epsódio…
    =*

  4. Navarro, muito obrigado pelo link 🙂

    E sobre a coluna, não dá pra dizer nada diferente de perfeita mais uma vez. Traçar paralelos entre Lost e os vários universos da qual ela bebe/bebeu parece ser um exercício de extremo interesse do nosso amigo CA não?

    Parabéns de novo CA!

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